D. Palmira era a mãe de minha colega do primário (e minha
primeira paixão infantil) Olívia. Naqueles idos as mães e os pais dos amigos
eram “entidades distantes”, seres que olhávamos sempre de longe, de baixo para
cima.
Em 2005, num evento da Academia, André e D. Palmira |
Ela um dia me resumiu isso ao lembrar, chorosa, do esposo
que a deixara há pouco, na época... Levava eu minha filha ao ombro quando nos
encontramos diante de sua casa e ela, brava – falava sempre brava – mandou: “Coloque
essa menina no chão para andar”. Diante de minha recusa, dizendo que tinha de
aproveitar enquanto ainda aguentava carregá-la, ela me deu razão e em seguida
falou brava do marido que morrera e a deixara para trás, viúva... Palmira não o perdoava por isso: o velho
Thales Gottschalk Fausto, que lhe dera doze filhos, era realmente o grande amor
de sua vida...
Thales, Palmira e aqueles que ela chamava de "Os 12 Trabalhos"... |
Falei dos doze filhos... Sempre brincava que ela não se
lembrava de todos, era humanamente impossível - provocava - para vê-la lembrar-se de todos...
Humanamente impossível, escrevi? Não para ela! Palmira os
tinha todos, de igual monta, de igual forma, lá dentro daquele coração que,
amorosa, lembrava de cada instante vivido com eles, desde o parto! De todos
eles falava com o mesmo carinho, a mesma ênfase. De todos tinha sempre um caso,
que nunca esquecia os detalhes... Mesmo quando os detalhes a fizessem novamente
parecer a mãe-coruja que zela por seus pintainhos, ou seja: ficar brava!
Brava “Tia Palmira” que um dia foi ser minha professora, lá
nos idos de 1984. Fiz-lhe então uma redação que ela, encantada, mandou
datilografarem e fez cópias, que distribuiu! Foi algo para mim inédito ter tal incentivo
vindo de um mestre, uma “mãe de amigo”, gente que era tão distante... E mais:
quando me formei na Faculdade e voltei a morar na terrinha, com a Tia Palmira
ao lado na fundação da Academia de Letras, companheira ali de primeira hora,
eis que do fundo do baú de lembranças ela nos aparece com um papel... Era
aquela velha redação de quase vinte anos antes! E me disse: “Você viveu aquilo
que escreveu, meu filho”...
Um dia estávamos em sua casa quando ela nos mostra algumas
velhas fotografias. Então, diante da imagem de uma turma da Escola Normal, a
imensa maioria de garotas, ela me pergunta: “Qual dessas você acha mais bonita?”.
Olhei, olhei... Então falei: “Você pode não achar a mais bonita, mas a que faz
mais meu estilo de beleza é essa aqui” – e apontei com o dedo uma das meninas
na foto. Não tive tempo de saber quem era: levei um baita tapa no braço! “Moleque,
tá querendo me puxar o saco, é?”. A menina que apontara era... a Brava Tia
Palmira! A “beleza brejeira” que se destacava no meio de tantas... Não adiantou
jurar que não sabia ser ela... E rimos a valer...
Uma beleza diferente, que me valeu um tapa... |
Bem... Falamos da Academia. Falamos de livros, ela achava
tempo para os ler, para transmitir a todos a paixão pela leitura, pela
transmissão do pensamento, do saber. Levaram-na um dia ao Chile e ela, com
propriedade, visitou a casa do Nobel de Literatura Pablo Neruda, para ali tirar
uma fotografia que registrou: “Descendo as escaleras do ninho de amor de Neruda
e Matilda”... Apenas ela poderia fazê-lo: Palmira foi um imenso ninho de amor! Brava,
mas de amor!
Nas "escaleras" de Neruda e Matilda... |
Brava Palmira, minha “tia” querida, que pude ser próximo já
tão tarde... Que me pegou no colo e me deitou num cantinho do coração que eu,
eu tinha medo de não caber... e cabia! E fomos pro quintal, quebrar coquinhos e
jogar conversa fora...
Jurei que ia rir de nossas lembranças. Que iria evocá-las
para não fazer um texto triste... Mas agora cai a ficha de que esse coração
gigante não estará mais aqui para nos acalentar, com o jeito bravo de quem, com
bravura e braveza, encarou a vida e fez da vida uma lição imensa de que é
possível ser mais que mãe, professora, amiga... Que é preciso lutar pelo
coletivo, NO coletivo; ser singular como todos somos, mas viver sempre no
plural...
Meus doze irmãos queridos: Cocão, Chris, Cláudia, Ângela, Hilda,
Olívia, Tiba, Baía, Gal, Telva, Pat e Zé... O mundo está sem Palmirô! O mundo
ficou tão vazio! Que será desse mundo, então? Como caberemos, de novo, num
coração de mãe?
Parece que ela nos deu, sempre, a resposta... “Coloque a
criança no chão, para andar com seus pés”...
Vamos andar sobre nossos pés! Palmira nos ensinou o caminho,
como mãe, professora e amiga... Que abracemos todos no coração, pois quanto
mais gente tivermos ali, mais amor virá! Amemos os livros. Escrevamos nossas
memórias. Ajudemos os mais necessitados. Sejamos... Bravos!
Brava Palmira, bravo! Você, realmente, merece ser – e é...
IMORTAL!